5.3.10

Cartas ao tempo. (11ª)


Um lugar qualquer, 05 de março de 2010.

Escrevo agora aquela carta pendente, cuja composição ficou postergada no tempo.
Minhas cartas não possuem destinatário. Em verdade, nunca possuíram. Foram cartas ao tempo, ente abstrato. Cartas com identidade de remetente e destinatário. Cartas a mim própria, à minha solidão por vezes povoada.
Escrevo esta última, para não me deixar sem resposta.
E devo dizer que esta é a minha mais verossímil composição, a que eu melhor me expressei, com toda a plenitude do que sou.
Vou começar:

Cartas ao tempo. (10ª)


Um lugar qualquer, 27 de junho de 2009.

Há tempo para tudo, há uma trajetória que deve ser seguida e respeitada, ainda que seja traduzida em silêncio. E como o silêncio é um poderoso caminho!
Só quero escrever quando houver respeito à minha trajetória, ao meu tempo de amadurecimento. E por isso cá estou novamente: porque as palavras que ainda ontem estavam verdes, hoje estão tão maduras quanto a minha dor e a clareza com a qual miro os segundos que escorreram dos meus dedos.
O Tempo tem sido muito bondoso comigo, fazendo-me crescer de dentro pra fora, através do aprimoramento dos meus sentidos e dos meus sentimentos para com o mundo e, principalmente, para com as pessoas. O Tempo tem me feito questionar toda a realidade aparentemente tão certa e tão sólida. Tem me feito indagar até que ponto os laços que criamos são verdadeiros; até que ponto não são forjados pelos interesses que inventam os sentimentos. E essas perguntas me trouxeram uma certeza tão absoluta quanto a vida e a morte: só o tempo acertará ou desatará os laços, falsos ou não.
E depois de uma tempestade que tive de atravessar sozinha, criei raízes mais fortes em mim. Mas assim que cessou o período de turbulência, senti-me acolhida e abraçada por pessoas que sempre estiveram à espreita em minha vida, pessoas que zelam pelos meus passos e que, com a força de suas palavras, fazem raiar aurora em meu coração secular.
Por mais que haja amparo de pessoas queridas, as adversidades são, essencialmente, períodos a serem enfrentados por um “cavaleiro solitário”, com uma rosa em punho e o olhar sempre adiante. É realmente muito desgastante deparar-se com a completa solidão à luz do dia, sem pudor. Mas eu nunca tive mesmo pudor para ser-me só.

Cartas ao tempo. (9ª)



Um lugar qualquer, 13 de fevereiro de 2009.

Antes de tudo, sou feita de noite. Sou sempre noite e caminho em direção a mim no escuro de minhas entranhas.
Eu tenho medo de pisar em falso. Tenho medo de ser atropelada enquanto cruzar uma das ruas do meu país imaginário. Tenho medo de me perder e nunca sei como voltar. Não sei para onde vou, caminho no escuro. Mas minha vontade de seguir e minha fé em um grande encontro que me fará eterna são maiores do que o medo de continuar.
Estou triste. Mas sempre estou triste. Mesmo a minha alegria é povoada de uma tristeza que é inerente ao meu ato incessante de esperar.

Cartas ao tempo. (8ª)


Um lugar qualquer, 18 de dezembro de 2008.

Estou procurando. Estou buscando desesperadamente algo que não sei explicar, como se eu persistisse em minha existência em virtude da esperança de encontrar este algo que me é essencial. Tateio no escuro com as mãos vazias, sempre vazias. Sigo no escuro, com os olhos tristes e desejosos.
As palavras tornam-se pequenas e insuficientes em certos momentos em que eu não caibo dentro de mim, em momentos em que parece que tudo é vão e que, por mais que brotem palavras das minhas mãos ansiosas, não haverá tradução para o que habita a escuridão e o mistério de uma noite despovoada de sonhos e de estrelas.
E, no entanto, sei que minha fraqueza é temporária, sei que estou desistindo para acreditar de novo, para buscar força nesse momento em que não sou nada por não conseguir expressar o todo que me torna tão pesada de ser-me.
Não há outra forma de viver se não lutando por ideais, mesmo que pareçam sem sentido, pois a própria vida não faz sentido e isso faz dela ainda mais extraordinária. Não há outra forma de viver, sobretudo, se não acreditando, tendo fé, pois sem a fé não há sonhos e sem sonhos não há motivo para existir.

Cartas ao tempo. (7ª)


Um lugar qualquer, 15 de novembro de 2008.

Na verdade, nossa “solidão triste” não nos permite ver que há sim, alguma coisa. Algo maravilhoso que sempre há por trás das pessoas que se reconhecem sós e que encontram beleza na solidão. Que se permitem uma alegria e uma melancolia no mesmo ser.
Certa vez disseram-me que o momento em que nós mais evoluímos, é aquele em que acreditamos que não há nada, que "nada acontece" (En attendant Godot, Teatro do Absurdo), que a nossa vida parou enquanto tudo continua lá fora.
Mas vou lhe dizer. Há sempre um silêncio, uma solidão muito entregue a si mesma e uma potência que parece nunca ter fim para anteceder um movimento. Um movimento que não prevemos, que não esperamos. E você saberá que a solidão se eleva, sim, mas que ela te eleva também. “Minha força está na solidão. Não tenho medo das chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.” (Clarice Lispector).
A escuridão sempre antecede o raiar de um novo dia.

Cartas ao tempo. (6ª)


Um lugar qualquer, 29 de setembro de 2008.

De fato, a condição humana nos faz criar coisas inefáveis, mas também nos faz destruir e desprezar aquilo que não pode ser convertido em valor econômico. Infelizmente, habituamo-nos a dar excessivo valor à matéria, às coisas terrenas, que podem ser reconhecidas e comprovadas e apoiamo-nos em um Deus apenas para não deixarmos de acreditar que, apesar de estarmos tão centrados em nós mesmos, em nosso ego, ainda temos perdão... Para que possamos deitar nossas cabeças no travesseiro e dormir bem, enquanto 23, 3 milhões de pessoas no Brasil estão abaixo da linha da pobreza; ¼ da população mundial “vive” com US$ 1,25 ao dia... Sabe, meu coração quer explodir!
Não sei se o homem é bom por natureza e a sociedade o corrompe, conforme defendeu Rousseau. Para ser franca, creio que ninguém é bom, mas também não somos completamente maus. Penso que não somos completamente nada! Não enxergo o mundo e nem a nós mesmos de forma maniqueísta. Mas sabemos que o ser humano é movido por seus desejos. E sabemos, por experiência própria e alheia, que o 1° desejo que o move é individual. O problema, é que em meio a uma sociedade fortemente individualista, como a nossa, focamos única e exclusivamente nesse individualismo, esquecendo-nos do outro ou vendo-o apenas como objeto, não como sujeito e, portanto, como nosso semelhante!
É, usamos de várias máscaras para encobrir as mazelas da alma humana. Para falarmos de igualdade, liberdade, respeito e fé sem termos que nos olhar no espelho para ver o que realmente somos... Ou para não termos que encarar o que nos falta. Nossos conceitos de liberdade e igualdade são forjados, são inventados e impostos para que não nos perguntemos como é possível ser livre e igual na miséria.
Embora eu esteja com você, estamos sozinhos. No fim das contas, todos nos resumimos a nós mesmos. Sigamos sós, mas rezo para que a solidão de todos possa me acompanhar em um caminho que, mesmo que ainda esteja deserto, possa um dia ser povoado... Um caminho que leve à verdadeira e efetiva igualdade e à união entre todos os povos, entre toda a irmandade humana e cósmica.

Cartas ao tempo. (5ª)


Um lugar qualquer, 05 de setembro de 2008.

Como é maravilhoso ser humano! É tão inerente à natureza humana a capacidade de se expressar, que nem nos damos conta de quão grandioso isto é. Cá estamos, trocando impressões do mundo, das pessoas e de nós mesmos. Estamos nos imortalizando nesses papéis em branco, imortalizando nossos sentimentos de ser no mundo.
Viver é um dom, uma surpresa a cada dia. É estar caminhando sempre sem nem mesmo saber o destino certo, sem ao menos ter a certeza do amanhã. Viver é um ato de coragem! Viver é amar loucamente e não ter reciprocidade. É chorar escondido enquanto a noite também parece dormir e te abandona à sua própria solidão de existir. Viver é estar só quando se está cercado por inúmeras pessoas. Viver é ter surpresas que te fazem saber que viver vale a pena! É se apaixonar a cada dia e, um belo dia, descobrir que todas as decepções não foram em vão, porque foram degraus para alcançar o mistério do limite da força humana.
Quão forte somos nós? Quão corajosos somos para nos assumir perante a vida?

Cartas ao tempo. (4ª)


Um lugar qualquer, 24 de agosto de 2008.

De fato somos constantemente colocados à beira de um abismo por mostrar quem realmente somos e o que realmente sentimos. Mas a verdade é que nem todos estão dispostos a sentir essa vertigem de quem parece estar prestes a cair, justamente porque a sociedade nos ensina a ser iguais e a satisfazer os desejos do sistema dominante. Somos enquadrados e homogeneizados e tornamo-nos meros fantoches reprodutores de emoções, de pensamentos, de crenças, de moda... Abandonamo-nos. E pergunto: qual o abismo maior? Cair em nós mesmos e para nós mesmos ou abandonar o que somos em prol da sobrevivência do sistema?
É muito fácil e cômodo aceitar as imposições da sociedade. É melhor não ter que ser ignorado nem desprezado por não ser igual. É difícil não ser tragado pela força violenta e dominadora da massa social. É difícil dizer não quando todos dizem sim. Mas de que vale a vida se vivida em uma prisão onde não há espaço pra crescer?
Certa vez li uma frase, cuja autoria desconheço, mas da qual nunca me esquecerei; dizia mais ou menos assim: nascemos todos diferentes e morremos cópia. Não quero ser uma cópia, não quero ser uma máquina reprodutora! Creio que quando Clarice Lispector disse que a maior necessidade do homem é tornar-se humano, ela estava coberta de razão e, convenhamos, ainda está coberta de razão e possivelmente, sempre estará. É urgente que tornemo-nos humanos, que tornemo-nos nós mesmos.
Vou cair sempre nesse abismo que me abandona a mim mesma. E vou estar feliz assim, porque o que vier, vai ser verdadeiro e eterno, não vai ser mero reflexo, mera reprodução.

Falling forever.

Cartas ao tempo. (3ª)


Um lugar qualquer, 13 de agosto de 2008.

Sabe...? Muitas pessoas me perguntam se sou feliz. Não tenho resposta para essa pergunta. Respondo-lhes: estou feliz ou não estou feliz. Creio que a felicidade e todos os demais sentimentos ou estados de espírito são, de fato, estados. Passam. Sou... Eu! Eu está feliz, ou está triste. Eu estou... E o estar se vai junto com uma notícia, junto com uma fase da lua, junto com uma espera... Muitas esperas... Mas o que sou não se vai. O que sou é eterno... A eternidade do meu ser no instante que é.
Sim, brindemos à vida e a todas as maravilhas a ela agregadas! Brindemos até mesmo às dores, que constituem a parte mais essencial da vida. E, sabe? As dores também têm sua beleza, mas na verdade ainda não sabemos aprecia-la. A dor é como um quadro pendurado na parede, que incomoda muito e que gera um sentimento de desprezo que nos faz passar por ele sem encará-lo e desvendá-lo... E este é nosso mal: o corredor onde ficou aquele quadro continua lá, escuro e abandonado, mas vivo nas esquinas da memória. Aquele caminho ignorado. Aquele caminho não assumido. A dor não assumida. “A vida é a dor de se ter. Amar a vida é assumir a sua dor.” (Carlos Lucena).

Esperando sempre...

Cartas ao tempo. (2ª)



Um lugar qualquer, 07 de agosto de 2008.

Não creiamos que a jornada perca o sentido toda vez que nos deparamos com a necessidade de ter que desistir um dia. Creiamos, sim, que a jornada da vida tem um sentido e que desistir faz parte desta construção que constitui nossas próprias vivências, porque essa decisão tão difícil tem por fim abrir novas portas, embora outras sejam fechadas. E quando se abrem novas portas, abrem-se com elas novos caminhos repletos de sentidos a serem descobertos por nós.
Tantas vezes temos que dizer adeus! Tantas vezes temos que fechar a porta esperando que alguém ponha os pés ao pé da porta e ninguém vem! E a porta se fecha e nós ainda olhamos para trás. Mas o tempo não pára e nem dá trégua. O tempo continua a correr e devemos deixar-nos levar pelas asas do tempo, sem prendermo-nos a um instante ou a um tempo que já passou, sem querer reter o tempo entre nossos dedos, porque esse ato de desespero nos aprisionaria em uma dimensão estática, na qual ficaríamos perdidos enquanto a vida continuaria lá fora, repleta de possibilidades, repleta do futuro tão deliciosamente desconhecido.

Cartas ao tempo. (1ª)



Um lugar qualquer, 05 de agosto de 2008.

Os princípios são tão difíceis e necessários quanto os fins, porque são ambos novos e desconhecidos e ambos exigem um esforço que muitas vezes nos é bastante penoso: para o fim, o esforço de desistir e aceitar, para os princípios, o esforço de ter coragem e se arriscar.
Hoje estou tendo coragem de me arriscar a escrever-te essas linhas, com a humildade de um coração deveras desenganado, enquanto vivencia este fim e tenta se fazer forte o suficiente para desistir de esperar por algo que, na verdade, resume-se a mim própria, porque os outros são a projeção dos meus desejos tantas vezes contidos e tantas vezes escancarados e desnudados perante a escuridão e o frio que embalam todas as pequenas mortes da minha vida. Sim, padeço hoje nas esperas e desilusões grávidas de mim...
Neste momento eu me deito nestas linhas e tento repousar em minhas palavras. Tento devorá-las para que possa acreditar nelas verdadeiramente, para que elas se impregnem em meu corpo e me façam ter a coragem e a certeza de que desistir é, de fato, a decisão mais difícil com que nos deparamos em nossas “pequenas-grandes” vidas.
Há uma calma se fazendo presente em meu semblante, outrora agitado e esperançoso; uma tristeza contida e potencial que me dá a capacidade que hoje manifesto de encarar um novo começo, de parir-me e nascer ao mesmo tempo para mim mesma. Há o reconhecimento de que devo reencontrar-me e sorrir para a companheira que me tem acompanhado em minha trajetória longínqua: a Solidão.